A expressão ‘lugar de fala’ nunca foi tão utilizada como nos últimos anos. Significa que ninguém melhor do que a própria pessoa que sofre alguma opressão para contar ao mundo sobre a sua dor. Importante notar que não é uma proibição a que outras pessoas falem; significa, sim, que contar a própria história é a melhor forma de se fazer ouvir.
Isso é ainda mais verdadeiro no caso de um grupo historicamente silenciado, formado pelas pessoas transgênero. Por terem sido, desde sempre, calados, elas e eles querem mais é falar. E para, literalmente, encontrar a própria voz, contam com a ajuda de um profissional especializado nessa ação: o Fonoaudiólogo.
A voz é uma das ferramentas mais potentes que existem para trocar ideias e se comunicar. Quando a voz combina com a pessoa que fala, o foco fica concentrado no conteúdo e o ato de conversar é confortável para quem tem o que dizer e para quem quer escutar. Quem se reconhece com o gênero no qual nasceu já sentiu incômodo nos momentos de rouquidão ou resfriado. Quem luta por aceitação no gênero com o qual se identifica, sente a inadequação todos os dias da vida. Aliás, todos não: esse sofrimento acaba no momento em que começa a ver os resultados do tratamento fonoaudiológico.
Encontrar a personalidade vocal é transformador. O Fonoaudiólogo especialista em voz e fluência Tiago José Nunes Aguiar (CRFa 8-8764) conta que, em geral, a busca pela identidade vocal começa bem antes das demais modificações acontecerem, e muitas vezes as mulheres trans chegam ao consultório com uma voz adaptada, que ainda não caracteriza o gênero. Elas procuram o Fonoaudiólogo em busca de uma voz aguda, mas o tratamento não se limita a esse elemento. “O primeiro momento é um feedback auditivo, a escuta cuidadosa para descobrir como será essa nova voz ideal para ela. A expressividade vocal é importante na busca da identidade porque há mulheres que têm voz grave mas não deixam de ser femininas. Não é apenas a frequência vocal que caracteriza a voz feminina. Trabalhamos com o tipo de ênfase e a inflexão, em alguns casos pode haver indicação cirúrgica para agudização da voz, em outros exercitamos a expressão”, conta ele.
A readequação para transgêneros procura modificar a frequência da voz, por meio de ajustes supralaríngeos, seja trabalhando a mudança de grave para agudo, seja feminilizando a voz com exercícios de suavização, postura de língua e discurso. Além de sobrecarregar as estruturas do trato vocal, exagerar na inflexão deixa o tom forçado e a voz muito caricatural. A caracterização da voz é algo que chama muito a atenção, e as pessoas trans podem enfrentar ainda mais preconceito se houver indefinição da identidade vocal.
Para João Lopes (CRFa 1-7536), Fonoaudiólogo especialista em voz e coordenador do projeto de confirmação vocal do público transgênero da Universidade Veiga de Almeida, o tratamento vai muito além de adequar uma voz, mas também e principalmente dar segurança para falar em público e proporcionar empregabilidade. “Promover a inserção dessa pessoa aos grupos sociais e ao mercado de trabalho, que costuma ser o principal motivo de busca da mulher trans por tratamento, eleva a autoestima e proporciona resultados muito bons em conquistar uma voz adequada à sua identidade de gênero, melhorando o desempenho no ambiente de trabalho e na sociedade”, afirma.
Ajudar uma pessoa a exercitar o seu lugar de fala e, assim, vencer o preconceito, a intolerância e a discriminação, é uma das várias tarefas gratificantes que a fonoaudiologia permite a quem abraça a profissão.
Todos os dias 28 de junho, desde 1970, acontece no mundo todo a Parada do Orgulho LGBTQIA+. Com muita música, barulho e formas de comunicação não verbal, como danças e fantasias de todas as cores do arco-íris, nesse 2020 de pandemia o orgulho terá que se manifestar muito mais no meio digital do que nas ruas. Felizmente, hoje, o lugar de fala das pessoas transgênero são todos os lugares; isso, graças à décadas de lutas do movimento e ao apoio de setores e pessoas, entre os quais profissionais que entendem que saúde é isso: poder ter orgulho de manifestar livremente ser quem se é. Parabéns aos Fonoaudiólogos que fazem parte dessa história corajosa de apoio à construção da própria identidade.